quarta-feira, 30 de janeiro de 2008

the londoner #24

Uma tarde estava eu no Oriental Club, que vocês já conhecem, servindo um almoço para um grupo de investidores da bolsa de Londres quando de repente, entre encher um copo e outro de vinho, ouço “Agora vamos falar sobre SOS investimentos no Brasil”. Levantei as orelhas e me tornei o garçom mais lerdo de todos. O palestrante, sentado no meio da mesa em U, continuou: “Tenho percebido nos últimos tempos uma ganância muito grande de todos em investir no Brasil, mas gostaria de lembrar aos senhores que o Brasil é um dos país mais socialmente instáveis entre os emergentes, então aconselharia aos senhores começar a diversificar mais seus investimentos na América latina, investindo não só no Brasil, mas também nos outros países sulamericanos”. E eu terminei de servir vinho. Ainda trabalhei mais uma vez, uma seman mais tarde, num evento grande e escocês, com direito a homens de kilt - a tradicional saia escocesa - gaite de fole, música típica, e gente falando o que parece uma incompreensível outra língua. Mas eu me surpreendi a saber que essa "bolsa" que eles usam na frente da saia, é para proteger as partes baixas, haha.

Acabei indo trabalhar outro dia também em um lugar que a Carla já tinha trabalhado várias vezes, numa escola em Shooter’s Hill. O lugar é muito longe, não tem metrô perto, e tinha que estar às 8 da manhã. Madruguei e quase me atraso, como sempre. Lá fiquei com uma chatinha da malásia numa cantina, onde eu tinha que cortar baguetes e recheá-las com o recheio que os estudantes pediam. Foi bem tranqüilo na primeira parte da manhã, super movimentado perto das onze, tanto que no meio da pressa eu queimei meu dedo feio numa sanduicheira, e foi insuportável depois do meio dia, quando a chatinha da Malásia, que tinha a mesma mal educação típica dos poloneses até quando tentava ser legal me fez arear quase vinte assadeiras. Eu digo legal, porque ela riu riu riu e depois de eu insistir confessou que ria porque as alunas costumavam nunca falar muito e serem grossos, mas estavam todos simpáticos naquele dia e voltando várias vezes, muitas desnecessárias, segundo ela, porque gostaram de mim. Haha. Mas foram vinte assadeiras, VINTE assadeiras. Disse a mim mesmo, lá não volto.

Mas em tantas andanças por lugares novos, havia apenas um dos lugares com quem o John trabalha, e que todos sempre comentaram, que eu nunca tinha conhecido. E quando conheci foi por uma semana inteira. Era o Middle Temple.

The Honourable Society of the Middle Temple é uma das quatro Inns of Court inglesa que dão aos seus membros o nome de barristers. De uma forma grosseira, é uma OAB inglesa, com milênios a mais de história e pequenas e grandes tradições. A partir do século treze, estas Inns of Court se originaram como abrigo e escolas para estudantes de direito. O Middle Temple fica do lado oeste do “The Temple”, que nada mais é que o quartel-general dos Templários até que eles foram dissolvidos em 1312. A peça Twelfth Night, de Shakespeare, foi apresentada pela primeira vez no Salão do Middle Temple. Este salão é muito usado em filmagens e no cinema, e até uma cena de Harry Potter foi gravado lá dentro.

Assim que entrei, me assustei com algumas pinturas gigantescas de alguns dos pintores mais importantes do mundo espalhados pelas paredes. O tipo de ambiente que transporta todos no tempo rapidamente, espero que vocês tenham alguma idéia por estas fotos ilustrativas. Todos os outros empregados do John sempre falavam que Middle Temple era o melhor lugar para trabalhar, o mais fácil e o mais tranqüilo, mas no meu primeiro dia lá, tive que discordar drasticamente.

Era uma sexta-feira à tarde, o único outro enviado do John era o eslovaco Jaroslav, simpático e esforçado. Às sextas à tarde, o Salão do Middle Temple funciona, vejam só, como self-service! Isso mesmo, todas as pessoas, invariavelmente do mundo jurídico, que trabalham e estudam e estagiam nos prédios vizinhos têm a chance de almoçar lá. Nosso trabalho seria o de recolher os pratos sujos e levar para a cozinha. Simples e insuportável. Rapidamente eu descobri que eu realmente gostava de servir banquetes, e a razão era a organização, entrada, vinho branco, água, retirar os pratos, prato princpial, vinho tinto, mais água, retirar os pratos, sobremesa, vinho do porto, retirar tudo. Era uma composição de tarefas organizadas, sempre seguidas de alguma pausa. Eu descobri que eu gosto de trabalhar com tarefas, e não com o tempo. Mas ali era só recolher e voltar e recolher e voltar e recolher, de forma desorganizada e repetitiva, o tempo não passava e isso me era insuportável. Mas ao menos o trabalho não era longo, depois de quatro horas eu já estava voltando para casa.

Na terça seguinte a coisa mudou completamente de figura. O John havia me perguntado se eu queria trabalhar com comida ou com os vinhos, eu escolhi os vinhos, sem saber direito se estava me aliviando ou me lascando. Mas acabei acertando. Era um jantar para os estudantes, promovido pela associação. O Middle Temple tem um quadro de funcionários fixo constituído basicamente de mulheres, uma delas inclusive tão grávida que a criança estava quase saindo pela boca. Algumas são inglesas velhinhas, e foi uma dessas que ficou para nos orientar. Havia umas 10 a 15 pessoas enviados pelo John, mas apenas três éramos responsáveis pelas bebidas, os outros ficavam só com a comida. Os dois brasileiros e eu subimos para a recepção, no mezanino, enquanto lá embaixo todos organizavam as mesas e os pratos. Aos poucos começaram a chegar, estudantes cobertos por túnicas pretas e professores de terno, e quando chegaram a meus ouvidos as conversas jurídicas em que eles discutiam, surgiu em mim um sentimento que permaneceria durante toda a noite. Uma inveja –das boas – uma vontade de ser um deles, de ter estudado direito ali, e de participar de tudo aquilo.

Aqueles jantares eram obrigatórios e parte do curso, e após sentados, eles não podiam se levantar nem para ir ao banheiro, antes que os professores e juízes mais velhos o fizessem. O trabalho foi realmente fácil, servir as duas garrafas de vinho gratuitas a que eles tinham direito, e depois perguntar se eles queriam mais e, desde que eles pagassem, pegar garrafas novas na adega. Mas claro, estudantes, praticamente ninguém o fez. Na mesa principal, que fica na horizontal, e no alto, sentam apenas os juízes ingleses, nesta mesa eu não podia nem chegar perto. Eu tinha apenas uma mesa grande para tomar conta, adorei.

Nos outros dias da semana continuei indo, sempre à noite, mas nas outras vezes servindo comida. Mas foi tão fácil e interessante quanto, eles eram muito organizados mesmo, e sempre saia uma fila indiana perfeita levando os pratos e os recolhendo, sempre em sincronia. E era responsável para tirar os pratos sujos de apenas dez pessoas, e mesmo esse recolhimento é ordenado, tiramos todos juntos de uma só vez, ao ouvir o aviso do responsável. Os funcionário de lá não eram exatamente simpáticos – maioria de poloneses – mas havia uma velhinha, essa sim, pegou no pé, e feio.

Já no primeiro dia, quando eu limpava alguns pratos cheios de comida – e eu já vos rogo, em nome de minha classe, nunca deixem comida nos pratos, quando forem a um restaurante, comam tudo! Vocês não sabem que isso dificulta nosso trabalho – eu acabei sujando minha mãe, e perguntei se tinha um lugar onde eu pudesse lavá-la lá na estação onde deixávamos os pratos sujos. Essa velhinha chata estava usando esta torneira, e quando eu fui perguntar se poderia usá-la para lavar minhas mãos, a cara chata da velha ficou ainda mais que o humanamente insuportável e a partir de então, sempre que ela me via, dali e em todos os outros dias, ela andava resmungando e balançando a cabeça e olhando feio em minha direção. Sempre repetindo: “Bagunceiro, sujo, mela tudo, bagunça tudo”. Imaginem o clichê básica de velha chata, era ela. Claro que como eu sou babaca, bastava isso para me fazer perder meu dia e ficar me sentindo mal o tempo inteiro.

Na outra sexta lá fui eu trabalhar de novo no almoço, mas dessa vez não no self-service, mas para algumas mesas separadas onde seria servido um almoço. Quando trabalhamos de dia, eles nos dão almoço, e qual não foi minha tristeza, de ir pegar a comida na mesma hora que essa velhinha estava pegando a dela, e então ela começou: “Mas que absurdo, como alguém pode comer tanto assim, que coisa mais absurda”. No meu prato tinha um pouco de patê de atum, uma rodela de massa recheada com salmão, e um pedaço de peixe empanado frito. Então ela chegou para mim e disse: “Mas não vai querer batatas para acompanhar não, vai?”. Eu, tolo, disse, “sim, claro”. E ela continuou “Iss é inacreditável, inacreditável, nós temos direito a um prato principal, ele pega três deveria ter vergonha, que coisa mais absurda”.

Estava lá aquele mesmo chato sabe-tudo que mora aqui em Londres há seis anos com visto de estudante. Eu desabafei logo para ele e ele disse que eu não me importasse, que era normal, que ela era assim com todo mundo, e que ela reclamava do prato dele todos os dias. Ele trabalhava no self-service todos os dias no período do almoço lá há algum tempo, e ficou o dia inteiro se gabando, claro, de como eles gostavam dele ali e sempre pediam ao John para chamar ele. Assim fomos nos encaminhando para pegar sobremesa, e santo pai, lá vinha a velha atrás de mim, agora espantada a resmungosa sem acreditar que ainda conseguiria comer sobremesa depois de ter praticamente falido a instituição com meu prato. Difícil, difícil.

Como na outra segunda-feira o John não me deu quase nada trabalhar porque eu tinha chegado tarde, na segunda seguinte lá estava eu na porta assim que ele chegou, para não tolerar ouvir ele dizer que já tinha distribuído todos os empregos. Mas então ele pede para eu sentar e esperar um pouco, e sentado num banquinho eu ouço incrédulo ele telefonar para mil pessoas, deixando mensagens ou falando pessoalmente dizendo todos os lugares onde eles trabalhariam durante a semana inteira e meia hora depois me dizer que, que pena, ele só tinha quarta e quinto disponíveis. Saí de lá com um basta, que não iria mais suportar aquilo, que iria procurar outra.

Foi nessa ironia que na semana seguinte, ele me encheu com 40 horas de trabalho. Era a semana de véspera do DALF, e esta em que trabalhei quase todos os dias no Middle Temple. No sábado, serviríamos o banquete de um casamento, e o John me convidou para uma festa na casa dele, no sábado seguinte. Sentei e prestei atenção ao pessoal do John, e percebi o quanto eu não gostava deles, nem um pouco. O trabalho foi tranqüilo, mas quando eu saí de lá, dois dias antes do DALF, sem tempo nenhum para estudar, eu decidi, não iria mais trabalhar mais com o John, no máximo só até arrumar outra coisa, mas por aqueles dias eu iria tentar estudar algo para o DALF. Urgentemente.

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