Eu estava à deriva. Saí para distribuir currículos na rua, fui no Marriot Hotel, no Hilton Hotel e nada. Todos os lugares pareciam bem servidos de funcionários. E assim mais um fim de semana se passou sem alegria ou sem turismo, só com um desemprego.
O povo da minha casa nova deve me estranhar. Ou me achar muito nerd. O fato é que eu não socializei com eles ainda, apensas tive uma conversa madrugal com o marquinho(s?). De pais portugueses, tendo morado algum tempo em Lisboa, ele está por Londres desde o começo do ano, Mas teve que voltar brevemente para casa pois sua mãe adoeceu. Trabalha em empregos de cleaner – limpeza e catering – garçom para eventos. Como aprendi a ser aqui, não perco uma oportunidade de perguntar logo se não tem uma vaguinha para mim. E foi assim que ele me deu o telefone do John, dono de uma agência de catering, e disse vá lá, é tranqüilo.
Terça de manhã estávamos eu e Carla, no número 77 da Oxford Street, procurando pelo tal John. A tal agência é só uma salinha pequenina no segundo andar, mas muito pequenina mesmo, tipo menos que um quarto médio em apartamentos em Maceió. Tinha duas mesas, uma do John e uma que estava desabitada, e numa outra mesinha de apoio ficavam umas pastas e uma bandeja com pratos e talhes e copos. Fui logo dizendo que o marcos tinha me indicado, ele perguntou marcos quem e eu disse não sei, então ele foi nos dando uns formulários para preencher e foi tirando cópia do meu passaporte e da carta da escola e depois perguntou se tínhamos experiência. Falei que havíamos sido treinados pela workplace solutions e ele colocou o prato na mesa com umas borrachas a fingir de restos de comida e disse limpes. Eu limpei, Carla limpou, ele fez umas correções, e disse que servíamos. Então pediu que fizéssemos silver service e eu respondi mordendo o lábio que não havíamos sido treinados para silver service. Silver service é quando nós temos que colocar a comida nos pratos dos clientes, e isto exige saber manejar um garfo e uma colher como se fosse um pegador, e isso eu realmente nem ia arriscar dizer que sabia. Ele ligou para não sei onde e confirmou se seria plate service ou silver service neste lugar e disse que tudo bem, poderíamos ir, trabalhar naquele mesmo dia no museu de história natural.
Porque é assim que eu estou conhecendo Londres, ou na bacaceira, ou trabalhando. Lá fomos eu e Carla na loja que o John pediu pra comprarmos o “resto”do uniforme – uma gravata borboleta preta e um colete. Ai meu deus aquele pedaço de pano minúsculo que consistia na gravata custou 5 libras, e o colete promocional custou 15, isso porque o preço normal era 30. Saí meio em estado de choque com a gastança, mas enfim eu tinha que ver tudo como investimento.
Chegamos na estação south kensington e fomos em busca do museu de história natural. Sem muita dificuldade estávamos no salão principal, como havíamos sido instruídos por John. Mas eis que lá uma mulherzinha da recepção diz que não era o lugar pode onde deveríamos entrar, que procurássemos a entrada dos empregados, do lado direito. Rodamos rodamos mas não conseguíamos encontrar, e logo estaríamos atrasados. Resolvi ligar para o gerente da noite que o John me passou como contato, e muito grossamente ele me explicou como chegar naquela entrada escondida.
A empresa do John, a ASAP Catering Limited (onde ASAP é sigla para assim que possível), na verdade oferece mão de obra extra para outras empresas de catering e alguns hotéis. A empresa para a qual seríamos mão de obra terceirizada naquela noite era a Mustard Catering.
Estávamos no subterrâneo do museu, e assim que começamos a ouvir do que se tratava o evento, eu fiquei excitadíssimo. O Festival of the Tress – Festival das Árvores – é um evento organizado anualmente pela princesa Anne para arrecadar fundos para crianças podres na áfrica. Ali dentro do saguão principal do museu estariam as pessoas mais ricas de Londres, devidamente convidadas para fazerem suas contribuições. Algumas apresentações de corais de crianças estavam previstas e logo aquele andar subterrâneo, cheio de mesas, estava repleto de gritarias infantis.
Mas o gerente ia chamando as pessoas e dando tarefas e eu e Carla só sentados de escanteio esperando alguma direção. Outros brasileiros chegaram, mas não tivemos tempo de conversar, logo todos estavam subindo para cuidar das mesas que lhes haviam sido designadas, e quando eu e Carla fomos protestar por estarmos ali parados ele me olha diz sabe o que eu gostaria que você fizesse? Ficasse aqui embaixo e ajudasse Iulia. Eu senti meu coração murchar. Mas cabisbaixo e sem responder, assisti Carla sendo mais uma vez mandada para longe e de mim e fui humildemente me resignar a dizer à Iulia que ali estava eu à sua disposição.
Parecia mentira, que logo quando eu queria o frevo e o encantamento de trabalhar num evento tão interessante, eu tinha ficado ali no porão para, como Iulia me explicava, alimentar os funcionários das empresas que faziam decoração, som e iluminação e servir lanches às crianças. Além de Iulia e eu, ficou uma alemã e uma Brasiléia, Lívia, que havia chegado atrasada, também estava lá, injuriada de ter que ficar ali sem ver ou fazer nada de interessante. Como só eu sou babaca, enquanto outras meninas brasileiras passavam, Lívia se enfiou no meio delas e sumiu e eu fiquei lá só pensando em como eu era um covardinho.
E então que não tínhamos o que fazer. Os vários saquinhos de lanches que estavam sobre a mesa à nossa frente as crianças mesmo levaram, e eu fiquei ali sentado morrendo de tédio. Mas não demorou até que eu começasse a considerar que talvez eu realmente esteja criando algum tipo de rancor em relação aos russos. Não sei se chegar a ser uma questão cultural, pois não tenho ainda tanto conhecimento empírico para afirmar algo do tipo, mas Iulia também era estupidamente grossa quando deveria ser normal, sempre respondendo perguntas como se fossem insultos e pedindo coisas como fossem ordens. Parece-me um povo muito autoritário e sem educação (politesse) nenhuma. Espero que logo apareça algum outro russo para apagar esta imagem horrorosa.
A alemã era só chata. Daquele tipo tenho-que-estar-fazendo-tudo-corretamente, e ficava o tempo inteiro procurando algo o que fazer, quando não havia nada. E claro, ficava me pedindo isso e aquilo. E as crianças subiram para se apresentar, e o tempo não sei onde se escondeu, e a Iulia e a alemã resolveram que já era hora de irmos na cozinha buscar a comida quente e colocar na mesa.
A alemã me levou por um labirinto de escadas até a cozinha, e eu desci com ela carregando pratos quentes de pão, lingüiças, uma torta-suflê vegetariana e shepherd’s pie, que descobri ser uma torta de suflê com carde de boi moída. É impressionante como aqui tem vegetarianos, sempre tem que ter alguma opção vegetariana em todos os lugares.
Sentado no tédio assisti ao povo comer, sempre esperando algum momento em que eu poderia roubar um pouco de comida também. Uns homens trouxeram dois barris e Iulia disse que era sopa de tomate e eu podia pegar. Claro que fui experimentar e apesar de ter queimado a língua fiquei impressionado de como gostei. A sopa era bem ralinha, parecia mais um caldo quente, mas nossa, muito bom.
Mais tarde eu entenderia o interesse da alemã em fazer tudo tão rápido e eficiente, ela queria sair mais cedo. Quando eu já estava lá resignado, pensando que no fim das contas pelo menos eu havia sido pago para fazer quase nada chega o gerente apressado quase ofegante e me diz você poderia subir? Preciso de você lá em cima.
Subi com ele e aterrissei lá em cima no salão principal enquanto crianças cantavam nas escadas e as pessoas assistiam em meio a ossadas de dinossauros. O gerente disse que eu era responsável pelas mesas 13, 14 e 15, e que deveria ficar enchendo as taças e vinho e de água sem parar. Eu estava radiante.
Mas estava também muito nervoso, todos corriam e eu não tinha muita certeza do que estava fazendo. E mais: não sabia abrir as garrafas de vinho. Muito rapidamente o tempo passou e o gerente me pediu para simplesmente colocar quatro garrafas de vinho em casa mesa (duas de vinho branco e duas de vinho tinto) e duas garrafas de água (uma com gás – aqui chamada sparkling – e uma sem gás – still). Como eu não sabia o que fazer voltei para a cozinha, esbarrei com Carla e dali em diante a coisa ficou mais interessante. De forma bem coordenada nós levávamos as sobremesas para as mesas, seguindo um garçom mestre que nos indicava onde ir, e as nove sobremesas caiam juntas na mesa. Eu também era responsável pela limpeza das minhas três mesas, isto é, tirar os pratos sujos.
Depois de alguns tenores cantarem, começariam os discursos, e toda a equipe de catering foi lá para o fundo da cozinha. Claro que todos roubamos várias sobremesas intocadas e nos sentamos para papear, éramos muitos brasileiros. E como é bom encontrar brasileiros aqui, e eu lembro de minha cabeça-durice pensando que de brasileiros eu queria passar longe, mas tem algo que por sermos brasileiros faz que nós nos entendamos melhor. E no fim das contas, aqui eu estou sempre sendo salvo pelos brasileiros. O pessoal era realmente simpático, trocamos telefones e dicas, e mais uma vez Londres pareceu mais fácil.
A maioria era de uma outra agência – PM – que paga 7 libras pela hora! E foi aí que eu descobri que eu estava sendo pago 6 libras pela hora, e não apenas o mínimo – 5,5 libras. Que beleza. No salão tinha duas árvores de natal enormes, e em casa mesa várias bolas vermelhas de pendurar em árvore de natal de tamanhos diferentes. Quão maior a bola, maior era a doação que se fazia, e bastava um olhar rápido em direção as mesas para notar aquelas que não tinham mais a bola maior sobre elas para saber que aquele pessoal era devidamente rico, doaram de uma só vez mil libras.
Mas logo a festa foi indo ao seu fim e todo mundo foi limpando os pratos de mundo, de depois os copos e depois os guardanapos, as toalhas de mesa, as cadeiras e por fim as próprias mesas. O trabalho foi divertido e o tempo passou rapidinho, acho que finalmente eu encontrei meu emprego aqui em Londres.
Mas ainda tinha um pequeno terror já usual: voltar para casa. Quase uma da manhã, não tinha mais metrô e muito embora existam ônibus noturnos, os famosos night buses para todas as regiões da cidade, eu não sabia qual o número do meu, nem Carla e dela, e assim sem sabermos, e depois de uma promessa furada de um tal taxi inexistente que a agência pagaria para nós, e com uma ajuda incerta dos outros brasileiros que também pegariam ônibus, resolvemos ir para picadilly circus.
Estávamos eu, Carla, Lívia e mais uma outra menina, os únicos quatro que estavam lá enviados pelo John. A Lívia morava lá no norte, no caminho de onde eu morava antes, e a outra menina morava no leste, como eu e Carla, só que mais ao norte. A Lívia estava meio exasperada, sem saber como chegar em casa nunca tinha ido sozinha de ônibus, e eu e Carla solidarizamos e fomos levá-la no ponto que ela precisava ir, no caso Leceister Square. Depois que deixamos Lívia tivemos que encarar nossa própria perdição e saímos assim andando de ponto em ponto, em busca de um que dissesse que tinha um ônibus que parava ali que nos levaria para casa.
Mas este ponto não foi encontrado, e três horas da manhã, já na Oxford Street, depois na Holborn Street, caminhando em vão e desespero, resolvemos ir para Bank, uma estação mais perto das nossas casas, na esperança de que lá algum ponto de ônibus fosse nosso portal mágico para casa. Mas não foi. E assim sem acreditar eu resolvi telefonar para a central de informações do transporte de Londres, e uma moça muito simpática me disse: em Bank, basta pegar o N15. E mal coloquei o celular no bolso é um ônibus N15 que eu vejo indo lá embaixo em direção a outra rua, e apertando meus calos dentro do sapato social em que nunca pensei fazer tantas estripulias eu saí correndo pela rua em direção ao ônibus que, guiado por uma alma boa, reduziu a velocidade e quase parando nos esperou chegar no ponto e subir. Ufa. E ainda assim valeu a pena.