quinta-feira, 6 de dezembro de 2007

the londoner #14


Na segunda-feira eu fui na escola, e foi tão legal que eu acabei ficando até o fim da aula. E entre as conversas bem humoradas que rolaram eu saí colega e Rafael e sua namorada, que estão aqui em Londres há 4 meses. Ele trabalha entregando encomendas de bicicleta de madrugada. Perguntei, claro, se ele não sabia de nada de empregos e ele disse que tinha um amigo dele que estava indo para o Brasil e queria encontrar alguém para ficar no lugar dele, num pub. Trocamos telefones e eu fiquei de ligar no outro dia de manhã.

Na terça de manhã, antes de ir no John, eu passei em um restaurante de comida oriental chamado ping pong. O nome parece engraçado, mas é um restaurante super premiado. A indicação veio do Magno, amigo que Lorena fez quando esteve em Londres. Lorena eu conheci nos EUA. O Magno está aqui ilegal há algum tempo e trabalha neste restaurante com documentos falsos. Ele me falou para ir lá falar com Raquel, que eles tentariam me encaixar lá.

Raquel é Brasileira, mas com dupla cidadania, começou no ping pong como assistente de garçom e hoje é gerente. Ela fez minha entrevista em inglês e me adorou, disse que estava mesmo precisando de alguém confiável e com um bom inglês, e disse que aquela posição, de assistente de garçom, era ainda melhor que a de garçom, pois tudo o que eu faria era trazer a comida para o balcão. Eu adorei ela também, adorei o restaurante, adorei a localização – perto da estação de Oxford circus – e era só um sorriso grande. Então ela esbarra no fato de que estou aqui com um visto de estudante, que só permite meia jornada semanal legal de trabalho, 20 horas. Então ela disse que o dono do restaurante não queria mais contratar part-timers, disse ainda que eles até faziam vista grossa anteriormente, mas agora não mais. Minha face se desmanchando, mas, disse ela, como tinha realmente gostado de mim, ia tentar convencê-lo. Saí cheio de esperança, mas com um gosto agridoce na boca.

De lá fui no John e acabei sendo empregado na hora, e o resto do dia vocês já sabem porque foi o assunto do the londoner anterior. Mas eu não lembrei de mandar mensagens para o Rafael e assim que acordei no outro lembrei ainda de mais um adendo: o DALF. O DALF é um exame de língua francesa necessário para que me mostre capaz de estudar nas universidades de lá. Eu iria fazê-lo no meio deste ano, mas irresponsavelmente acabei perdendo a data de inscrição – no caso exatamente a minha época de formatura e tcc – e agora no fim do ano, viajei antes da data em que as provas ocorreriam. O resultado disso é que eu teria que fazer a prova aqui, por mais bizarro que pareça vir à Londres fazer uma prova de francês.

Antes de viajar eu chequei na internete que as provas seriam no fim de janeiro, então de repente me bateu na consciência com algo que lembrei de última hora que provavelmente eu já estava dentro do período de inscrição, que normalmente acontece dois meses antes. E quando acordo na quarta-feira de manhã e olho na internete, vejo que as inscrições só iriam até o próximo sábado, no caso 8 de dezembro.

Na quinta-feira de manhã já saí direcionado ao Institut Français, que por ironia fica em frente ao museu de história natural onde eu tinha trabalhado na terça. Já amanheci com uma boa notícia, um recado de Marcele no orcute, dizendo que tinha aberto vaga no restaurante dela. Marcele se formou em direito lá na UFAL igual comigo, mas na outra turma. E o melhor, o restaurante dela era perto do Instituto.

Chegando no instituto recebi um échec – eles não aceitavam nem dinheiro vivo nem cartões, era ou cheque ou ordem postal. Como eu não tinha nenhum nem outro decidi voltar no outro dia, pegando uma ordem postal. Fui no restaurante da Marcele – Tampopo, mas lá só me pediram para preencher uma ficha e foi só isso. Fui embora frustrado. E quando eu ainda estava na Oxford street só passeando para não perder a noite o John me liga, perguntando se eu e Carla podíamos trabalhar naquela noite, pois algumas pessoas adoeceram e não puderam ir. Claro que eu disse que sim e fui correndo pra casa.

Mas mesmo com toda minha pressa, até eu chegar em casa, trocar de roupa, voltar até o local, já se passaram algumas horas. Então que nós atrasados simplesmente não encontrávamos o lugar. Subíamos rua, descíamos rua, passamos uma hora correndo no frio morrendo de medo de quem seria o gerente que ia nos receber assim tão atrasados. Mas nós, claro, tínhamos um trunfo de termos sido avisados de última hora, então fosse quem fosse teria que nos entender.

Ligamos para o tal Mark, mas ele não atendeu. Menos mal eu pensei, assim eu posso dizer que liguei e ele não atendeu. A região onde estávamos, the city of london, é o centro financeiro da cidade, e também a parte mais velha de Londres – hoje misturada com alguns arranha-céus – e ninguém mora lá praticamente, então vai entrando a noite e o lugar vai ficando cada vez mais assustadoramente vazio. Encontramos uma rua fechada por um portão, e ao verificarmos que o portão estava aberto, tinha que ser ali. Mas a rua acabou em outro portão e não vimos nada de Carpenter’s Hall. Um homem fumava por ali, e quando questionado por nós onde diabos ficava o tal lugar ele apontou para a esquina, um prédio todo fechado, sem nome, e sem ninguém na sua porta grande e pesada de madeira.

Tentamos entrar de alguma forma, procuramos por portas, recepções, mas não tinha nada, parecia um lugar fechado. O John havia me ligado às 17h30, já era quase 20h30. Resolvemos telefonar de novo, e dessa vez o Mark atendeu, e muito rapidamente disse que ia mandar alguém para nos pegar. A porta de madeira então se abre, e um rapaz magro aloirado de cabelos bem curtos e óculos pequenos sussurra: são vocês?

Apressadamente e nitidamente nervoso ele nos jogou lá embaixo nuns vestiários e disse troquem-se que eu já volto para buscar vocês. Ele vestia uma gravata verde e um avental, mas como eu não encontrei nada desses por lá, nem peguei. De novo não precisávamos da gravata-borboleta e do colete que me haviam custado 20 libras que eu não tinha, e isso só me dava raiva do John. O rapaz voltou e nos levou até lá em cima, em uma cozinha tensa e como não sabíamos o que fazer ficamos por lá esperando que alguém notasse nossa existência, mas nem o rapaz que nos tinha levado até lá parecia se lembrar de nós, entrando e saindo apressadamente da cozinha. Até que o Mark apareceu e olhou para nós.

Minha primeira reação foi não acreditar que eu estava sendo tratado daquela forma. Ele tinha uma face de ódio do inferno e começou a gritar que nós nos atrasávamos 3 horas e ainda ficávamos lá esperando com cara de imbecis e jogou – isto mesmo, jogou – duas gravatas em cima da gente, empurrou a gente para um quartinho onde tinha um monte de caixa de copos, mandou a gente colocar elas rápido e bateu a porta atrás da gente. Ai meu deus eu tinha que dar um nó decente na gravata. Olhei pra cara da Carla, que já ia começar a dizer que ia embora e eu olhei pra gravata com um ar que implorava que ela soubesse fazer aquilo melhor que eu e ela respondeu de cara que nunca tinha pegado numa gravata na vida. Ai meu deus o monstro ia voltar logo logo, eu precisava fazer alguma coisa.

Pensando e tentando lembrar dos meus encartes de jornais com esquemas para nós em gravatas eu tentei e dei o nó que me pareceu mais possível, um para mim, um para Carla, e eis que quando a grosseria em vida abriu a porta e olhou para nós, ele virou para trás, coçou a cabeça com um ar de quero-explodir-o-mundo-em-que-esses-dois-imbecis-vivem-só-para-fazer-do-universo-um-lugar-mais-suportável, e começou a gritar de novo, com um tom de voz ainda mais grosso e debochado, CHEGAM 3 HORAS ATRASADOS E NÃO SÃO CAPAZES DE DAR UM NÓS NUMA GRAVATA? ISSO É TUDO O QUE VOCÊS SÃO CAPAZES DE FAZER NÉ? DOIS INÚTEIS MESMO. Eu e meu bolo de saliva amarrado na garganta. LEVANTE O COLARINHO. E eu não entendi o que ele disse. LEVANTE O COLARINHO SEU DEMENTE, NÃO ENTENDE O QUE EU FALO NÃO POR ACASO? Eu entendi e levantei o colarinho. Com a delicadeza de quem parecia estar me esmurrando ele desfez o nó que eu tinha dado, colocou a gravata de novo em volta do meu pescoço e deu seu nó triplo italiano. Ele gritou o mesmo para Carla, e ela entendeu menos ainda. Eu falei em português o mais baixo que pude que era para levantar o colarinho e ele me olhou com um ar de ódio de minha existência e eu me afastei dois passos. E quando ele ia fazer o mesmo numa Carla cabisbaixa, notou que a blusa dela não tinha um botão até em cima. ESTA PORCARIA NÃO SERVE, PEGUE ESSA BLUSA AQUI E ENFIE EM VOCÊ AGORA. E bateu a porta de volta. Carla me olhava incrédula, com olhos de eu vou embora agora. Eu disse acalme-se a gente precisa garantir esse emprego e me virei para que ela pudesse trocar de blusa com um mínimo mais de privacidade.

O Mark voltou, respirando densamente, e deu de cara com a Carla segurando a gravata com a mão. Então ele falou em francês com ela, perguntou se ela falava francês. Passou uma luz na minha cara e eu pensei que poderia agradar à ele, vai que ele precisava de alguém que falava francês, e eu disse eu falo um pouco, bem baixinho. Ele me ignorou completamente, e a Carla nem sabia o que se passava. Depois ele perguntou de onde ela era, e ela disse do Brasil. Ele olhou para trás e riu, levantou o braço, aparentemente ele tinha apostado com alguém na cozinha, e esse alguém da cozinha tinha ganho a aposta, tinha acertado que ela era brasileira. Enquanto ele dava aquele nó interminável ele perguntou à Carla como ela era brasileira se não parecia, e ao que a Carla não entendeu e olhou para mim eu respondi só para ele me olhar e perguntar com toda sua grosseria: por acaso você é a mente dela? Por acaso eu perguntei algo à você?

Ele acabou o nó e nos mostrou à cozinha, apontou para uma moa magrinha de feições pálidas bem exóticas, cabelos acinzentados curtos e ondulados, e disse fique com ela. Tive que me segurar para não correr. Cheguei para ela o humilde que pude e disse logo que ela me dissesse o que eu deveria fazer porque eu não sabia. Ela sorriu docemente e eu sorri mais ainda. Era Saiia, finlandesa que estuda dança aqui em Londres. Muito docemente ela me deu informações detalhadas de tudo o que eu deveria fazer. Ela me deu dez pessoas na mesa em U que estava no salão de jantar, e eu era responsável por manter os copos de água e vinho sempre cheios, e ainda limpar os pratos sujos. Na hora da sobremesa, bastava olhar para o Mark que ele apontava em que lugar deveríamos entrar para levar os pratos. Sem grandes dificuldades.

Vieram os discursos e nós ficamos ociosos na cozinha. Vi que a Carla não tinha tido tanta sorte com a mentora dela, que era um tanto chatinha e apressada, mas estava tudo bem. Então a Carla me puxa e diz esse aqui é o Filipe! E eu Filipe quem? Ela Filipe de Curitiba que eu conhecia do orcute e mandei ele ir lá no John também atrás de emprego e ele conseguiu e aqui está. O tal Filipe estava trabalhando de Kitchen Porter, que consiste em pegar os pratos e copos sujos e mandar de elevador para onde eles lavam lá embaixo. Tinha ainda uma mulher brasileira com cara de fedor, uma menina com cara de mundo da lua, e um outro cara brasileiro com ar simpático. Mas eu nem interagi muito com eles, porque eu não saía de perto da saia de Saiia (haha, que trocadilho infame meu deus), para não dar nem chances nem cabimento de o Mark olhar para mim de novo com aquela cara feia.

E surpreendentemente o trabalho foi tranqüilo e divertido, e rapidinho já era hora de ir embora. Então o Mark olha para mim e para um rapaz alto e pálido e pede para a gente ir lá embaixo com um polonês baixinho para ele ir lá nos mostrar o que fazer. Aí que é sempre assim, sempre sobra um trabalhinho de mula para eu fazer no final. O outro cara que veio com comigo é espanhol, mas da Galícia, região onde fica Santiago de Compostela, e onde eles falam o gallego, que é muito parecido com o português. Ele, o Toti – apelido em homenagem do jogador italiano, foi muito simpático e trocamos telefones, ele odiou o Mark e passava o tempo todo querendo ir embora. Nós ficamos eu, embaixo no subsolo, enchendo o elevador com caixas e caixas de pratos e copos, e ele lá em cima, na rua, descarregando o elevador. E quando acabamos ainda chegou o caminhão, todo mundo foi embora, e ficou eu lá, babaquinha, ajudando a encher o caminhão. Porque eu sou aquele bobo que sempre tenta agradar o chefe e mostrar que eu não tenho preguiça. O Mark chegou, pegou um charutão e acendeu, e começou a carregar o caminhão. O Toti, que já tinha pedido para ir embora e levado uns gritos do Mark foi embora mesmo. E ficou só eu e dois poloneses – um deles que era o tal menino magro ossudo de óculos pequenos – mais o terceiro polonês baixinho, todos a carregar o caminhão junto com o motorista. Mais de meia-noite já. Esse polonês sempre dava dedo quando o Mark se virava, e os outro dois, que eu descobri serem os baba-ovo mores do Mark faziam cara feia. Eu fiquei só dando o máximo de mim pro trabalho braçal, e então quando o caminhão estava semi-cheio o Mark chegou para mim, estendeu a mão, me agradeceu e disse que apesar de ter chegado atrasado, eu havia recompensado muito bem. Eu disse thankyou e fui com um sorrisão no rosto encontrar Carla e Filipe que me esperavam na esquina, e ainda dava tempo de pegar o metrô.

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